
No vai e vem das marolas, passou uma eternidade. Saudosas lembranças de quando eu fazia o caminho pelas águas da Guanabara, dos cheiros que iam da maresia e do ar, às vezes puro, ao acentuado aroma das sardinhas 88, que muito agradava as gaivotas esvoaçantes ou empoleiradas no Minas Gerais, ou em outros navios inoperantes e fragatas abandonadas, ancoradas e a boiar.
Os esnobes aerobarcos riscavam o mar, encurtando a viagem para menos de um quarto do tempo, disponíveis para quem se dispusesse a pagar mais em troca de rapidez e comodidade. Também dispensavam o assédio de vendedores, pedintes, dos malandros apostadores de “purrinha” e do atropelo do desembarque.**

Sentido Arariboia era mais calmo pela manhã, quando grande parte daquela cidade dormitório se dirigia ao Rio para trabalhar. Jorravam pelo lado direito da Praça 15 rumo ao centro nervoso, compondo o intenso movimento de um dia de semana normal. Bares e lanchonetes lotados serviam café da manhã no balcão. Meu pedido: uma “canoinha e um carioca” só para dar uma forrada.
Nos calçadões e sarjetas de avenidas, ficavam os vendedores de novidades ainda não encontradas nas departamentais e que, na maioria das vezes, só funcionavam bem nas mãos do treinado vendedor. Uma vez adquiridas, certamente iriam para alguma gaveta, dando sempre a sensação de ter sido enganado.**
Embusteiros ludibriavam “inocentes” com jogos de “sorte” tipo: em qual das três forminhas de empada de boca para baixo estaria a bolinha? Quando o incauto, que já tinha ganho algumas, achava que ia se dar bem, apostava tudo e caía no golpe. Para anuviar a perda, alegavam que a polícia estava chegando, desmontavam a banca improvisada e saíam correndo, não dando a menor chance da vítima questionar. A grande plateia, formada por desempregados, garimpeiros de anúncios de classificados e office boys enroladores, logo se dispersava em busca de outras atrações, que variavam de malabaristas a homens da cobra, passando por sermões arrebanhadores de crentes, todas sinalizadas pelas grandes rodas de pessoas.**
Aglomeravam-se nas laterais das bancas de revistas para ler manchetes, sub leads e leads dos jornais expostos, com muito maior concentração nos sensacionalistas, que caprichavam nas chamativas manchetes. Após a escolha detalhada, alguns acabavam comprando. Até as TVs ligadas em qualquer canal que fosse, nas lojas de linha branca, formavam aglomerações.

E segue, o centro do Rio oferecia muitas opções para quem tinha algum tempo disponível: diversos sebos de livros e discos disponíveis para excelentes garimpos, bibliotecas para pausas e leituras, fantásticas igrejas históricas sempre abertas para concentrações, meditações, reflexões e consequentes sonecas ou até mesmo para um lanche rápido, tipo comer um pacote de biscoitos, leituras repentinas e pequenas reuniões secretas.
Ao se familiarizar com as ruas, avenidas, vielas e becos do centro, você passava a saber onde ficava cada coisa, qual o melhor caminho para se chegar a qualquer lugar, onde eram vendidos determinados produtos, onde se almoçava bem e barato e que horas abria, onde tinha o melhor joelho ou pastel chinês com caldo de cana, ou uma simples laranja descascada, e até onde ficava cada mendigo e cada apontador de jogo do bicho. Esses tinham pontos determinados; só os vendedores de bilhetes premiados viviam mudando de lugar.
Os sinistros mascates de pequenos produtos de contrabando chegavam sorrateiramente para oferecer a infalível pomadinha japonesa, ao contrário dos escandalosos pedicures improvisados, vendedores de calicidas que se apresentavam aos berros de “tira calo e cravo na hora” e, como prova da eficácia, expunham em cima de um caixote os enormes calos extraídos ali mesmo.

Sentido Redentor, quando a noite despontava, contra a multidão já retornando, a barcaça manobrava, se posicionando no ronco do arranque da aceleração do motor, que a faria deslizar nas águas espelhadas e, ao se aproximar, ia refletindo os inconfundíveis e modernos edifícios da antiga capital.
Nada lhe faltaria se, por algum motivo, tivesse que passar um tempo na Praça 15: bebidas, comidas, boas e diversificadas companhias. Tinha o aroma já característico dos pescados que vinham do Sul e eram comercializados embaixo do elevado.
Era também ponto final de diversas linhas de ônibus que circulavam pela cidade e, às vezes, a permanência se dava pela espera do próximo ônibus que, por muitas vezes de próximo em próximo, acabava tendo que pagar rápido o Angu do Gomes (que só cobrava o angu; a cachaça era de graça) e sair correndo na tentativa de pegar o último.

Caso acontecesse de perder, uma das opções era pegar uma barca, voltar para Niterói e dormir na praça de lá, que era menos perigoso.
A travessia da Baía da Guanabara teve por muito tempo as barcas como a melhor e mais rápida opção de transporte e só foi desafogada com a construção da ponte, que nos deu inclusive a opção do “quase mil” ou o 999, que fazia ponto final no Passeio.
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JVivanJr.