“Um Dia de Viagem”, na crônica de Jair Vivan

Crônica Viu essa?

Chegamos! Agora, a viagem que levava um dia ou uma noite inteira pela via-férrea já podia ser feita na metade do tempo pela estrada de rodagem. Sentíamos mais as curvas, mas dormíamos com bem menos barulho. Tínhamos que ir nos adaptando aos poucos: havia o susto do farol na cara que fazia acordar do cochilo com a cabeça apoiada e trepidando, amortecida por um chumaço de cortina no vidro da janela; a buzinada esticada e enfraquecida no distanciamento da aceleração; a curva repentina que jogava um para cima do outro; e o vento gelado da fresta da janela que, às vezes, contornávamos calafetando a brecha com a cortininha. Seguíamos entre freadas, aceleradas e solavancos.

Era melhor evitar poltronas em cima das rodas para minimizar o sacolejo. Depois, nos ônibus mais modernos, era bom evitar as poltronas defronte à porta do banheiro, que, além do abre e fecha pelos usuários, era normal abrir sozinha a cada curva. Assim, quem ocupasse os últimos assentos do lado esquerdo recebia as bufadas de cheiro, na melhor das hipóteses, de desinfetante.

Outro cuidado que fazia a diferença era escolher os ônibus diretos, que, na verdade, faziam algumas poucas paradas, pois o “parador,” que fazia jus ao apelido, parava em cada trevo e cada porteira. Era também conhecido por “cata mendigos,” como se fosse comum mendigo viajar de ônibus, mas assim eram chamados.

Outra grande desvantagem do “parador” era que, ao supor que viajaria em duas poltronas por achar que a adjacente não seria ocupada, chegava o dono e cortava o barato, às vezes ainda no início do trajeto. No direto, isso só aconteceria bem mais para frente, nas cidades maiores, onde o ônibus especial faria suas escalas. Mas era possível viajar em duas até o destino, esticado, com as panturrilhas apoiadas no braço da poltrona, deixando as canelas e os pés atravessados no corredor, tipo uma cancela. Só que tinha que recolher na ida e volta de algum outro passageiro que cutucasse para ir ao banheiro.

Assim, chegávamos na imensa, moderna e lotada rodoviária, com o teto cheio de cores, que passava a sensação de novidades e coisas belas e magníficas.

De cara, na enorme metrópole, tudo era muito bonito e promissor. Começava no colorido da rodoviária e seguia pelo cinza poluído do dia a dia, cheio de dificuldades, facilidades, problemas e soluções, tudo ao mesmo tempo.

Tinha mesmo que ir para lá; tudo era em São Paulo e, de trem, era mais barato, normalmente de segunda classe, que tinha assentos de madeira. Mesmo porque a intenção era se alojar no vagão-restaurante, que servia bebidas e comidas para encarar a longa viagem de um dia ou uma noite. Também dava para ir controlando o fiscal e viajar boa parte no vagão com assento estofado da primeira classe. Tinha que ir no sentido contrário; ele passava e, depois do conferimento, a gente ia para os vagões melhores, onde já tinha sido fiscalizado. Em alguns casos, com muita sorte, dava até para viajar de leito.

Dava também para ir sem pagar. Nesse caso, tinha que penetrar clandestinamente no comboio e se trancar no banheiro todas às vezes que o fiscal apontava na reta da conferência. Não era fácil viajar doze horas de trem para chegar na Júlio Prestes, estação que nos dava a impressão nostálgica de uma São Paulo antiga, elegante e receptiva, pulverizando gente para todos os seus cantos.

… JVivanJr.

1 thought on ““Um Dia de Viagem”, na crônica de Jair Vivan

  1. Fiz muito essas viagens. Valia mais a pena as 10 horas de trem que os solavancos de 8 horas de ônibus. Depois que estava trabalhando em São Paulo, já ia sempre de leito. Mas não sem antes encher a cara no restaurante. Como sempre ia nas vésperas de feriados, juntava um monte de ourinhenses tomando cerveja e conversando.

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